Por Luiz Kohara e Maria Antonieta da Costa Vieira
PUBLICADO EM LE DIPLOMATIQUE BRASIL
A pandemia do coronavírus expôs de forma abrupta as faces cruéis da extrema desigualdade social, econômica e urbana. Em países como o Brasil, em que as desigualdades são gritantes, grande parcela da população, especialmente urbana, trabalha no mercado informal sem seguridade social, e mora em condição de precariedade extrema. Consequentemente, os efeitos da pandemia se alastram rapidamente nos grupos mais vulneráveis, pela dificuldade de manter as condições de isolamento social necessárias para impedir a contaminação, pela precariedade de atendimento do sistema de saúde, que não dá conta de absorver a demanda, ou mesmo, pela fome. Não é por acaso que os índices de letalidade pela Covid 19 são maiores nas áreas urbanas com menor infraestrutura urbana e serviços públicos.
Entre os grupos sociais vulneráveis, a população em situação de rua marcada pela condição de extrema pobreza e sem meios para se proteger do vírus é a que apresenta maior risco de contágio e morte.
São pessoas desabrigadas, sós ou com familiares, sem nenhuma proteção e privacidade. Como se preservar quando não se tem nem uma moradia que permita manter o isolamento social. O acesso a material de higiene e água é praticamente inexistente. Os centros de acolhimento que abrigam esse segmento social, em geral, são superlotados, podendo ser fonte de maior contaminação.
Questões já colocadas em tempos anteriores sobre a necessidade de políticas sociais efetivas que atendam essa população ganham relevo neste momento. Torna-se urgente colocar em discussão quais são as necessidades da população em situação de rua, e quais as medidas que precisam ser tomadas para enfrentar essa triste realidade. Além disso, se não houver ações públicas para enfrentar as consequências sociais da pandemia haverá ampliação significativa do número de pessoas em situação de rua.
Quem é a população de rua?
Torna-se cada vez mais difícil para as famílias de trabalhadores de baixa renda sobreviver nas grandes e médias cidades brasileiras, em função dos baixos salários que são insuficientes para manter os custos da moradia. Hoje, o valor da locação de um quarto em cortiço nos bairros centrais de São Paulo está por volta R$ 900 mensais. Na periferia, o valor é menor, mas em compensação são mais altos os custos de deslocamento entre moradia e trabalho. Para manter a moradia, mesmo que precária, esses trabalhadores deixam de atender às necessidades essenciais, como alimentação e saúde, o que os levam à extrema vulnerabilidade e à fragilização dos laços familiares.
Pesquisas revelam que antes de ir para a rua, grande parte dessas pessoas trabalhava em atividades pouco qualificadas, principalmente na área da construção civil, serviços domésticos e de limpeza, serviços de reparação e comércio informal. Vivenciavam intensa mobilidade de trabalho geralmente no setor informal, em funções desqualificadas e superexploradas. Com as mudanças do mundo do trabalho, cada vez mais competitivo e exigente em relação à qualificação tecnológica, pessoas com baixa qualificação são consideradas descartáveis.
Nas razões apontadas de ida para rua destacam-se três fatores que, muitas vezes, estão inter-relacionados: problemas com o trabalho, com a família e com o uso abusivo de álcool e/ou drogas, sendo que o desemprego aparece como fator principal.
A passagem para a situação de rua decorre, também, da falta de um sistema de serviços de proteção social – geração de renda, saúde, moradia, assistência social, educação – destinado a pessoas ou famílias em condições de alta vulnerabilidade nos momentos de instabilidade econômica, social e de desemprego.
É crescente o número de pessoas em situação de rua
Nas últimas décadas, essa população vem crescendo significativamente no Brasil, especialmente nos grandes centros. Não há dados de pesquisa para o país que permitam quantificá-la, embora o estudo do IPEA tenha estimado, para 2015, a presença de 101.846 pessoas em situação de rua em cidades brasileiras, concentrada principalmente nas grandes capitais1 . Em São Paulo, o último censo realizado em 2019, encontrou 24.344 pessoas em situação de rua. Este grupo vem crescendo a uma taxa muito superior à da população da cidade. Entre 2000 e 2019, a variação da população da cidade foi de 17,5%, enquanto que a da população em situação de rua atingiu 180%. Nesse período, houve momentos de melhoria de renda e crescimento econômico, mas não suficientes para garantir melhoria das condições habitacionais da população.
Entre 2000 a 2010, o Produto Interno Brasileiro (PIB) cresceu cerca de 40%, sendo que o salário-mínimo teve uma valorização real de aproximadamente 70%, e houve expressivo crescimento dos índices de empregos formais. No entanto, a população em situação de rua, em São Paulo, passou de 8.706 pessoas em 2000, para 14.478 pessoas em 2011, apresentando crescimento de 66,3%.
Em São Paulo, entre janeiro de 2008 e novembro 2019, o valor médio dos imóveis cresceu 208,94% e o dos aluguéis, 114,98%, enquanto o índice de inflação IPC/FIPE, no período, variou em 82,6%, segundo a FipeZap. Assim, é insuficiente melhorar a renda para garantir necessidades básicas das populações de baixa renda, como a moradia digna; é necessário que a melhoria de renda esteja conjugada a políticas urbanas de controle da valorização imobiliária, isto é, ao preço da terra e do aluguel, caso contrário, será crescente o número de pessoas (de forma acentuada aquelas em situação de rua) sem moradia.
Perfil e condições de vida
A denominação população em situação de rua abriga um conjunto heterogêneo de grupos particulares que possuem características e necessidades diferentes. Há idosos que não conseguirão mais entrar no mercado de trabalho e não possuem proteção previdenciária; famílias com filhos que demandam cuidados e serviços específicos; pessoas com sofrimento mental e usuários de substâncias; grupos com necessidades especiais, como os deficientes; grupos de mulheres sós e grupos com diversas orientações sexuais, como os que fazem parte dos grupos LGBT. Apesar da heterogeneidade, a população em situação de rua apresenta algumas características comuns: maioria de homens, não brancos, que vivem sós, com idade média aproximada de 40 anos, com baixa escolaridade.
O acesso ao trabalho e à renda restringe-se às oportunidades de realização de “bicos” que a rua oferece: coleta de material reciclável, vendas no farol, guarda de carros, etc., ou seja, um trabalho realizado em condições extremamente precárias, sem nenhuma estabilidade, que impossibilita acesso e manutenção da habitação.
Vivendo nas calçadas, praças, marquises, baixos de viadutos, sem nenhuma proteção física adequada, são sujeitos a riscos de assassinatos, agressões, discriminação e outras situações de violação da dignidade humana. As condições de vida na rua levam também à fragilização da saúde com doenças crônicas (hipertensão, diabete, asma, tuberculose), além de ampliar os riscos do já vulnerável grupo de idosos. As mulheres, que representam aproximadamente 15%, são vítimas de diversas formas de violência física, sexual e moral, bem como, os grupos LGBTs.
Trata-se finalmente de um segmento social marcado por preconceito, estigmatização, indiferença, desprezo e agressão por parte da sociedade, bem como por agentes públicos com ações repressivas e expulsões violentas dos espaços a pretexto da higienização; intervenções ainda mais graves com os dependentes químicos.
Um marco importante dessa violência foi o massacre, em São Paulo, com a morte de oito pessoas em situação de rua, em 2004, desencadeando inúmeras manifestações da sociedade civil em todo país e a criação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), atualmente organizado em várias cidades.
Avanços e desafios de políticas públicas
Historicamente, a atuação do poder público e da sociedade brasileira junto à população de rua se orienta por uma visão preconceituosa e estigmatizadora, que criminaliza esse grupo social, entendido como “caso de polícia” ou o desqualifica como desprezível, irrecuperável, descartável, entre tantas outras denominações e entendido como objeto de caridade. A resposta a esta situação é quase sempre uma ação repressiva, higienizadora ou, então, assistencialista e emergencial.
A partir da década de 1990, iniciou-se a política pública para população em situação de rua com programas significativos em São Paulo e em Belo Horizonte. Em dezembro de 2009, o Decreto Presidencial n. 7053, estabeleceu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, que reconhece, no âmbito federal, a problemática desse segmento social em sua complexidade e a perspectiva intersetorial das políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda. No entanto, essa população não é contemplada, até hoje, nos programas de habitação de interesse social, mesmo que se constitua no grupo social que vive a falta de moradia de forma absoluta.
É essencial habitação para a população em situação de rua
A população em situação de rua, que mais necessita de habitação por estar em total privação de moradia, não está incluída na contabilização do déficit habitacional, que é calculado com base na pesquisa domiciliar.
Historicamente, o acesso à moradia por meio de programas públicos sempre esteve vinculado à capacidade de pagamento do beneficiário, e não visto como necessidade fundamental para o bem-estar do ser humano e condição da inserção social, portanto, como um direito de todos os cidadãos brasileiros. Não é por acaso – sendo a moradia uma mercadoria valiosa –, que não se consiga avançar com programas habitacionais para a população em situação de rua.
A resposta do poder público à necessidade de moradia da população de rua tem se restringido basicamente ao atendimento assistencial da rede de proteção social, por meio do abrigamento temporário em equipamentos coletivos, que muitas vezes funcionam como depósitos de pessoas, que não conseguem ter a privacidade preservada e atendem apenas parte dessa população.
Experiências internacionais têm evidenciado que o acesso à moradia deve ser o eixo principal articulador da política de atenção à população em situação de rua. No Brasil, algumas experiências pontuais vêm sendo desenvolvidas por organizações sociais, movimentos populares e governos municipais.
A pesquisa “A moradia é a base estruturante para a vida e a inclusão social da população em situação de rua”2 revelou que vários “mitos”, que reforçam preconceitos, não se sustentam, como: “quem está muitos anos na rua não consegue acostumar dentro de uma casa”; “a população de rua está acostumada com a liberdade da rua”; “a população de rua não gosta de rotinas de casa”. Os depoimentos apontaram que apesar das dificuldades, as pessoas se esforçam para assegurar a moradia e reconhecem que as responsabilidades com as rotinas e pagamentos contribuem para sua estabilidade.
Para as mulheres em situação de rua, além da violência urbana, o risco é ainda maior em virtude do machismo que prevalece na sociedade e que se agrava na rua quando não há um teto para se proteger. Os depoimentos dessa pesquisa revelam de forma profunda, para homens e mulheres, a dor e a violência que é estar na situação de rua.
Ter endereço, ter cama para dormir, ter lugar para cozinhar, ter companheira(o), ter privacidade representam direitos e conquistas expressivas para quem vive ou vivia na extrema exclusão, fazendo-as sentirem dignas e cidadãs.
O acesso à moradia tem possibilitado estruturação da vida familiar e avanços expressivos na inserção social, mas é necessário que programas habitacionais levem em conta a vulnerabilidade social desse grupo, o que inclui ação articulada de serviços de outras áreas, como saúde, assistência e trabalho, sendo a moradia a base estruturante da inclusão social. Trata-se, portanto, de uma demanda específica para as políticas públicas que vem se somar a já extensa demanda de habitação popular para os grupos de baixa renda.
Coronavírus e a população em situação de rua
Nesse momento emergencial do coronavírus, que agrava o risco de contaminação e de morte da população em situação de rua, é urgente que todos nessa situação tenham condições de proteção à vida. É fundamental que tenham possibilidades de abrigamento em locais que permitam o isolamento social com distanciamentos necessários; acesso fácil à água potável e materiais de higienização; alimentação; acompanhamento regular de agentes de saúde; identificação como população em situação de rua nos casos de atendimentos e ações articuladas entre os órgãos públicos.
A locação de vagas em hotéis, com apoio social, mostra-se a forma mais viável para assegurar a proteção à saúde do atual momento e integrar a política pública de abrigamento da população em situação de rua. A adaptação e ocupação de prédios ociosos aparecem como outra possibilidade de acolher com privacidade grupos sem moradia que necessitam de abrigamento.
Considerações finais
A pandemia evidencia com mais clareza o que já ocorria anteriormente: a gravidade da situação vivida por esse segmento social e a insuficiência das políticas de atendimento para garantir direitos em relação à vida, saúde, moradia e trabalho. A situação de emergência exige providências urgentes e aponta para a necessidade de formulação de políticas públicas que efetivamente respondam às demandas.
Novas soluções e formas criativas de enfrentamento dessa pandemia têm surgido, especialmente baseadas na solidariedade de organizações, movimentos sociais e instituições públicas, mas há ainda um longo caminho a percorrer.
Temos em curso as consequências da pandemia que extrapolam o âmbito da saúde, com instauração da grave crise econômica que ampliará as desigualdades e a pobreza, com efeitos incomensuráveis mais diretos nos grupos vulneráveis. Assim, se não houver medidas sociais protetivas – moradia, saúde, trabalho –, poderemos ter uma catástrofe social com centenas de milhares de pessoas em situação de rua. É essencial proteger quem está na situação de rua e impedir que outros encontrem nas ruas e nos espaços públicos o único lugar de sobrevivência.
Luiz Kohara é doutor em Arquitetura e Urbanismo, pesquisador das questões urbanas, membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, assessor do Centro de Apoio e Assessoria a Iniciativas Sociais –CAIS e da Pastoral Nacional do Povo da Rua e colaborador da Rede BrCidades. Maria Antonieta da Costa Vieira é doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, membro da OAF, assessora de movimentos sociais e pesquisadora de temas ligados à população em situação de rua e políticas públicas.
1 Pesquisas sobre a população em situação de rua no Brasil têm adotado como referência a seguinte definição: “O grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
2 Pesquisa de pós-doutorado de Luiz Kohara, realizada, em 2018, com 52 pessoas que deixaram a situação de rua e acessaram a moradia, em São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza e Salvador, por meio de programas públicos municipais, estaduais e federal ou por meio de acessos próprios. Relatório científico. Universidade Federal do ABC (UFABC/CNPQ) sob a supervisão de Francisco Comaru.